DISPOSITIVOS DE CONTROLE, PLANOS DIRETORES
E UMA CELEUMA SEM BASE
*CARLOS EDUARDO COMAS E GLÊNIO BOHRER
A celeuma em torno da reformulação do PDDU proposta pela Secretaria do Planejamento Municipal dá a impressão de que Porto Alegre tem uma legislação urbanística exemplar e que sua alteração seria quase um sacrilégio. Curioso. Não há dúvida que as intenções que nortearam originalmente a sua elaboração foram as melhores possíveis. Todos queremos uma cidade mais "humana" e com maior "qualidade de vida", seja lá o que isso quer dizer. Contudo, após 18 anos de implantação e muita revisão no meio do caminho, está ficando difícil negar que as suas virtudes aparecem cada vez mais ralas quando se analisam seriamente a sua substância e os seus resultados. O atual PDDU está mais para problema que para solução. É complicado, incoerente, arbitrário, irrealista, perdulário, anacrônico, coercitivo onde poderia ser flexível e omisso onde haveria razões para maior rigor.
A complicação fica flagrante quando se quer saber quanto e como se pode construir em um terreno. A tabela de índices de aproveitamento do atual PDDU não é de muita valia. Qualquer profissional do ramo tem de responder com um "depende", porque a tabela só se aplica à parte da área de construção permitida. Em edifícios residenciais, por exemplo, o aproveitamento efetivo pode superar o dobro do índice nominal.
Muitas áreas são consideradas "não computáveis" ou "excluídas" do cálculo do aproveitamento. Prevêem-se bonificações que premiam pilotis, sacadas, coberturas, garagens, serviços gerais dos prédios, áreas de uso recreacional coletivo e paredes externas espessas. Ao índice de tabela corresponde uma altura máxima de tabela, equacionada em número de pavimentos. No entanto, desde 87 se admite o acréscimo automático de dois pavimentos, bastando observar afastamentos um pouco maiores do edifício em relação aos limites do lote.
Por outro lado, existindo altura máxima e altura mínima de pavimento, a compra de índice construtivo permite embutir até dois pavimentos de altura mínima dentro do gabarito definido pelo número de pavimentos e pela soma das alturas máximas de pavimento permitidos. Em resumo, onde a tabela diz quatro pavimentos, talvez caibam oito; onde diz aproveitamento 1,0, nem Deus é capaz de adivinhar que número vai sair. Não é de estranhar que todo mundo se queixe da lentidão da aprovação de projetos em Porto Alegre, que penaliza o arquiteto, o engenheiro, o construtor, o cliente e o próprio quadro técnico municipal.
As bonificações mencionadas ilustram bem a incoerência do 1º PDDU. Elas aplicam-se tanto a elementos construtivos obrigatórios, quanto a elementos complementares mas não indispensáveis. Edifício sem paredes externas não é edifício, é guarda-chuva. A sacada agrada muita gente, mas não parece ser prioridade: o "envidraçamento espontâneo" se tornou tão natural quanto o gradeamento dos pilotis e sua utilização como estacionamento, pondo por terra a intenção original do estímulo a áreas de lazer e indicando um descompasso com a prática do cidadão, que demonstra que sua própria proteção e a proteção de seu carro lhe interessam mais que a fusão do espaço público da rua com o espaço privado do lote.
As bonificações de sacadas e pilotis parecem se ter estipulado em função de uma idéia arbitrária de "bonito". A isenção das coberturas nasce da regularização do uso privado de antigos apartamentos de zelador e está especificada de maneira a produzir áreas de estar em dois níveis distintos, o que não fica mal quando o apartamento é grande, mas beira o ridículo em unidades de tamanho mais modesto. De fato, as bonificações premiam a construção de luxo, já que a menor renda não pode pagar as amenidades dispendiosas favorecidas pelo Plano. Paradoxalmente, o elemento de maior interesse público - a garagem que alivia a pressão do estacionamento na rua - só é incentivada até certo ponto e desconsiderada no caso de comércio e serviços com área computável inferior a 3.500,00 metros quadrados.
O atual PDDU permite a construção nas divisas laterais do lote em toda a cidade sem maior problema. Os limites de altura efetivamente dominantes sendo de quatro e seis pavimentos, correspondendo a pilotis, cobertura e dois ou quatro pavimentos tipo. Adotando a altura máxima de pavimento permitida de 3,50 metros e o pilotis máximo de 5,65, a altura limite para construção nas divisas é de 16,15 metros em um caso, e de 23,15 metros no outro, eqüivalendo, respectivamente, a 6 e 8 pavimentos de altura mínima.
Contudo, para construções mais altas, o ideal normativo é o do edifício isolado em centro de terreno, na suposição de que o afastamento das divisas garante automaticamente e por principio uma maior "qualidade de vida". Aplicado sobre uma estrutura fundiária existente em que os lotes são tipicamente de área pequena, estreitos e alongados, o ideal resulta na promoção do edifício barra perpendicular à rua ou, no caso menos freqüente de lotes aquadradados, na promoção do edifício torre.
A suposição de base é logicamente indefensável. Qualidade de vida não é privilégio de nenhuma tipologia arquitetônica. Pode-se morar e trabalhar em torre ou barra, em casa, apartamento baixo ou apartamento alto, com janela dando para a rua, com janela dando para o lado ou com janela dando para o fundo. São as características específicas da situação que vão definir a bondade ou ruindade do projeto.
Considerando as dimensões reais dos recuos previstos no atual Plano, janela para a rua oferece, quase sempre, melhores condições de privacidade do que janela para o fundo ou lado, porque as caixas de rua somadas aos recuos de frente têm maior largura que a soma dos recuos laterais ou soma recuos de fundo afetando lotes contíguos. Em outras palavras, os atuais recuos são insuficientes; a ilusão de "qualidade" se mantém só enquanto o edifício isolado for a exceção no meio de casario. Quando todo um quarteirão se edifica segundo as regras do PDDU - como na praça da Encol - dá para verter a água da chaleira na cuia do vizinho sem que ninguém precise sair de sua casa.
Note-se, por outro lado, que o que vale para lotes de grande testada não se aplica à sucessão de lotes de testada média ou pequena, perfazendo uma frente total similar. Num lote de 54,00 metros de testada, uma construção de 8 pavimentos pode desenvolver-se paralela à rua com 44,00 metros de comprimento de fachada, mas em três lotes sucessivos de 18,00 metros, a construção precisa se desdobrar em blocos de 8,00 metros. Não é a continuidade do prédio ao longo do quarteirão que parece estar em jogo. É o horror da "empena cega" que se manifesta, ou seja, é uma reação estética particular, perfeitamente aceitável na esfera privada, mas absolutamente inapropriada como fundamento de legislação que deve ser reflexo racional do interesse coletivo. Tudo indica que qualquer problema ocasionado pela extensão de uma fachada para a rua é problema da extensão de quarteirão, não da edificação no lote. Nesse caso, a resposta é uma só: desapropriar para abrir rua ou praça.
A literatura urbanística há muito já mostrou que a tipologia isolada no centro do terreno é solução de luxo. Não é o caso de cansar o leitor com fórmulas matemáticas, mas para quem se interessa pela prova cientifica, vai a dica: consultar as pesquisas do Institute for Land Use and Urban Studies de Cambridge, Inglaterra, sintetizadas num livro intitulado "Urban Spaces and Structures", de autoria de Leslie Martin, Philip Steadman e Marcial Echenique, publicação de 78 da MIT Press, Cambridge, Mass. Da mesma época do atual PDDU.
Falamos de recuos insuficientes: de fato, a primeira versão do Plano previa recuos laterais e de fundos para a edificação em altura que resultariam em afastamentos se aproximando de uma caixa de rua, para que Porto Alegre se tornasse uma Nova Atlântida, mesmo que fragmentariamente. Assinadas pela mesma equipe que elaborou a versão original, as revisões de 87 resultaram de uma pressão que faz sentido do ponto de vista da economicidade do uso do solo urbano, porque a combinação de grandes afastamentos das divisas, alturas comprimidas, índices de aproveitamento baixos e terrenos pequenos gerou um nó total no aproveitamento mais intensivo de áreas dotadas de infra-estrutura invejável, muito provavelmente um desperdício numa situação de escassos recursos públicos.
Não cabe dúvida que as mudanças foram infelizes, principalmente pela oportunidade perdida de corrigir o seu equívoco de base. Quando se tenta replicar na metrópole a cidade de veraneio burguesa sem apoio na realidade, as probabilidades de gerar uma Nova Capão são demasiado altas. Basta olhar para comprovar.
Submetidos ao atual PDDU, os quarteirões da cidade viraram soma descoordenada de edifícios de variadas alturas e alinhamentos, aleatoriamente dispostos sobre os lotes. Sua feição se tornou imprevisível por completo, imprevisibilidade que não vem do fato da municipalidade não comandar o investimento privado nem o ritmo de substituição de prédios antigos por prédios novos. Afinal, a previsibilidade total é inviável até em cidades planejadas do zero. Contudo, aqui o problema se vincula diretamente aos dispositivos vigentes, bem como a sua articulação com o apelo ao remembramento. Mesmo diminuídos os valores de recuo, em áreas como a Bela Vista, onde casas estão dando lugar a edifícios, boa parte dos lotes tem testadas inferiores a 17,00 metros, permanecendo sem possibilidades de construção enquanto não remembrados.
Ora, o remembramento é um processo aleatório, que aumenta a imprevisibilidade da configuração do quarteirão. Tudo concorre para exacerbar as descontinuidades tipológicas nos corredores e unidades territoriais de Porto Alegre. Não se trata de mero problema de estética. Os problemas de privacidade e conforto ambiental acarretados pela vizinhança de edificações de alta e baixa altura são óbvios, especialmente quando a edificação baixa for residência e os lotes de tamanho médio ou mínimo. Note-se ainda que o remembramento favorece a ação de agentes imobiliários mais capitalizados e, por extensão, a tendência ao oligopólio na indústria da construção.
A dose de irrealismo do PDDU é demasiada. Quanto menos caso faz da estrutura fundiária existente, mais dependente se torna do lote, mais se afasta de uma visão de conjunto. O regime de alturas e afastamentos é um exemplo, o regime de taxas de ocupação é outro. As esperanças depositadas na "taxa de ocupação" são equivocadas. Lê-se na letra da lei que a taxa de ocupação deve regular a projeção horizontal das edificações tendo em vista o incentivo a áreas de lazer e recreação nas unidades territoriais carentes, a preservação de áreas livres em função de seus aspectos visuais ou paisagísticos e a garantia da permeabilidade e integridade de relevo do solo assim como a aeração e insolação das edificações.
Ora, se em área de rico não existe praça ou ginásio de esporte, o problema não é tão grave, porque rico tem acesso a clube, à praia, à serra, Cancun e Disneylândia. O problema se coloca em bairro remediado e pobre e o PDDU espera que remediado e pobre paguem de seu bolso parco o que o Poder Público não pode ou não quer fornecer. Ou melhor, como no papel a responsabilidade de eliminação da carência foi transferida para o privado, o Poder Público pode repousar com a consciência tranqüila. Marx está fora de moda, mas tem páginas eloqüentes e pertinentes sobre a falsa boa consciência da burguesia.
Algo parecido ocorre com a idéia de garantir a permeabilidade do solo via taxa de ocupação. Cidade não é campo, e o PDDU ao menos reconhece isso quando permite subsolo e a pavimentação do piso térreo para estacionamento. No campo, a retenção da água da chuva é importante, para diminuir sua velocidade de escoamento e minimizar a possibilidade de erosão. Na cidade, a água da chuva tem de escoar o mais rápido possível, para minimizar a possibilidade de alagamento.
Em outras palavras, faz-se necessário um sistema urbano de drenagem pluvial e é razoável imaginar que esse sistema se coordene com um sistema municipal de espaços abertos. O que não faz sentido é pensar que a taxa de ocupação é a panacéia que permite aos bem-pensantes dormir em paz. A fantasia da aeração e da insolação é outra questão importante, de novo confundindo a responsabilidade pública quanto a quarteirões e seu conjunto com determinações afetando o lote individual. Certamente, a variedade de orientações de quarteirões põe por terra a possibilidade de garantir aeração e insolação de maneira tão simplista. Na melhor das hipóteses, a taxa de ocupação se tornou um mecanismo inócuo.
Para culminar, o 1º PDDU tornou-se uma "camisa de força" cerceando a possibilidade de investigação projetual responsável. As bonificações em geral viraram subterfúgio para driblar o índice de aproveitamento antieconômico no empreendimento imobiliário de maior padrão; as sacadas em particular se tornaram o meio de obter áreas de pavimento economicamente mais satisfatórias; a compra de índice construtivo um mecanismo para escapar das limitações de altura. Em qualquer caso, a obsessão com o isolamento do prédio em centro de terreno inibe qualquer gesto de boas maneiras com os vizinhos e a consideração do quarteirão com a unidade morfológica urbana.
Às observações feitas pode-se acrescentar o fato da atual espacialização dos regimes de alturas constituir uma escada decrescente à medida em aumenta a distância do Centro, representação literal de uma hierarquia tornada obsoleta pelo desenvolvimento de múltiplos centros nos últimos anos. As críticas feitas não são exaustivas. Há muito mais deficiências a apontar. Entretanto, são mais que suficientes para referendar uma reformulação dos atuais dispositivos de controle. Simplificação de procedimentos e instrumentos é tarefa prioritária, referendada pelo Congresso da Cidade, assim como o interesse em favorecer uma cidade mais compacta, mais econômica na utilização da infra-estrutura existente. Dar maior liberdade ao projetista dentro de um marco urbanístico coerente é outro objetivo justo.
Por fim, mas não menos importante, cabe regulamentar de maneira consistente e fecunda o Solo Criado aprovado pela Câmara. O potencial do Solo Criado supera amplamente a captação de recursos para o Município. Correta e imaginativamente equacionado, pode disciplinar e orientar a renovação e expansão urbanas.
É destas criticas, dos argumentos que as fundam, da observação da realidade das práticas espaciais dos porto-alegrenses e das premissas definidas consensualmente por Executivo, Legislativo e cidadania que derivam as diretrizes de reformulação de Dispositivos de Controle originalmente propostas pelo grupo de trabalho constituído pela SPM, pelo PROPAR/UFRGS e entidades como o SINDUSCON e a ÁREA, dentre outras. Destacam-se entre elas:
- a consolidação dos índices de aproveitamento nominal e efetivo num único valor, que incorpora porcentagem das atuais bonificações em proporção correspondente à média da sua utilização típica até hoje;
- a definição de limites para o aumento de índice possível através da compra de Solo Criado, em função de características do terreno e do regime volumétrico a que se submete;
- a definição de regimes volumétricos básicos referenciados a três tipologias fundamentais de construção, a casa ou edificação de baixa altura, o prédio sem elevador e o edifício com elevador;
- a adoção de recuo de fundos generoso, visando garantir condições de afastamento entre fundos de edificações equivalentes às proporcionadas pelas caixas típicas de rua da cidade;
- a eliminação da taxa de ocupação;
- a liberação da proibição de construir nas divisas acima de seis pavimentos;
- o aumento da liberdade projetual com a definição de um envelope máximo de construção superior ao aproveitamento possível, permitindo ao empresário, cliente ou projetista encarar alternativas na definição da altura e projeção de laje do projeto;
- a atenção ao Código de Edificações vigente na definição dos parâmetros de iluminação e ventilação de compartimentos;
- a possibilidade de regimes especiais em situações urbanas atípicas ou em função do consenso de seus moradores e, por fim, a racionalização das oportunidades oferecidas pelo atual PDDU despojadas de seus ranços e preconceitos.
*ARQUITETO, PROFESSOR DO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA DA UFRGS/ CONSULTOR DO 2º PDDUA.
**ARQUITETO/ FUNCIONÁRIO DA SPM/ INTEGRANTE DO GRUPO DE TRABALHO DOS "DISPOSITIVOS DE CONTROLE DAS EDIFICAÇÕES".