UMA PROPOSTA DE SIMPLIFICAÇÃO, FLEXIBILIZAÇÃO, NEGOCIAÇÃO E PARTICIPAÇÃO POPULAR

*CLÁUDIA PILLA DAMASIO

Até a década de 50, apenas 40% da população brasileira era urbana. De lá para cá cidades desenvolveram-se e multiplicaram-se em um contexto marcado pela concentração de renda, pelas diferenças sociais, pelos processos excludentes. Planejá-las neste cenário revela-se, a cada dia, um novo desafio. Desafio quando busca-se enquadrá-las em princípios técnicos cientificamente definidos; desafio quando busca-se articular as diversas forças que tencionam o seu desenvolvimento.

Desde o início do século, de forma bastante pioneira em nível nacional, Porto Alegre vem sendo pensada por cientistas do urbano. De João Moreira Maciel e a sua bandeira sanitarista, passando por Ubatuba de Farias, Edvaldo Pereira Paiva e chegando até o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, em 1979, muito se pensou e se produziu sobre os rumos do desenvolvimento da Capital gaúcha. Quando, em 1993, por ocasião do I Congresso da Cidade, registra-se, por vontade popular, a necessidade de reavaliar o Plano Diretor de Porto Alegre, para os técnicos responsáveis por esta tarefa os desafios materializaram-se na articulação, entre outros aspectos, da flexibilização com a simplificação da legislação.

Estas questões entraram em pauta a partir de um diagnóstico crítico tanto do Plano de 79 quanto dos processos gerenciais da rotina de planejamento praticada cotidianamente. A complexidade da lei era evidente e a sua original rigidez advinda de fortes embasamentos científicos dera lugar a uma "colcha de retalhos" que destruíra a sua unidade. O zoneamento rígido desenhava a proposta balisado por princípios de eficiência e funcionalidade. A cidade, calculada na ponta do lápis, estava no papel mas, na prática, mostrou-se multifacetada, dinâmica e bem mais complexa do que o traçado. Ao longo dos anos, incontáveis alterações pontuais foram sendo embutidas na legislação que ganhou complexidade e, muitas vezes, incoerência.

Desta análise surgiram as metas de simplificar e flexibilizar. Simplificar porque, teoricamente, uma lei complexa condiciona um sistema de planejamento truncado, lento, dúbio; o domínio centralizado de seu conteúdo, facilita a corrupção, impede o controle por parte dos cidadãos. E flexibilizar porque passa-se a reconhecer que, por mais "futurologistas" que sejam os planejadores, jamais suas propostas representarão e compreenderão a diversidade da realidade na sua totalidade.

O 2º PDDUA - 2º Plano Diretor de Planejamento Urbano Ambiental - não abre mão do zoneamento, da normatização do uso e ocupação do solo. Propõe, contudo, normas mais simples e claras; facilita o regramento da morfologia urbana; transforma todo o território em urbano objetivando um maior controle por parte do município; identifica áreas de patrimônio ambiental. Propõe "Corredores de Centralidade" – porções lineares do território com diversidade de atividades que cumprem função semelhante a dos antigos Pólos de Comércio e Serviço – mas com maior flexibilidade, oferecendo mais alternativas locacionais e não incentivando, por meio de potencial construtivo, algum tipo específico de atividade, repudiando a prejudicial unifuncionalidade.

No quadro desta flexibilização, o conceito de gerenciamento se impõe. Por gerenciamento entende-se o processo de contínua atualização dos parâmetros propostos, através do monitoramento do desenvolvimento urbano. Significa, portanto, aceitar a possibilidade de que análises e prospecções cientificamente elaboradas possam, frente à diversidade da realidade, mostrar-se frágeis e insustentáveis, exigindo um contínuo processo de avaliação e reavaliação. Por outro lado, fica claro que, um processo gerencial urge metas e objetivos bem traçados de forma que seja permitido definir o norte a ser atingido e possibilite-se realinhamentos constantes dos caminhos, sem perder de vista o ponto de chegada. Encara-se assim o "gerenciar" não como um ato de "não planejar", mas como de constante "replanejar".

Com este espírito apresenta-se o Sistema de Avaliação do Desempenho Urbano - instrumento de monitoramento e de análise das interferências na estrutura urbana no seu contexto mais geral, servindo de suporte à decisão municipal, subsidiando, inclusive, o trabalho prospectivo. Incorpora-se o conceito de Operações Concertadas como um importante instrumento. Procedimentos negociais que visam articular os diversos interesses em busca de um objetivo comum, as Operações Concertadas sintetizam o reconhecimento da necessidade das parcerias, das trocas, das articulações. Elas abrem, inclusive, em um nível mais amplo, espaço para um planejamento mais projetual e menos normativo, constituindo um grande desafio pois requerem, por um lado, toda uma requalificação da estrutura administrativa e, por outro, uma metodologia de trabalho ágil e eficiente que articule os macro-objetivos desenhados para a cidade com as características e demandas pontuais dos projetos específicos. É a desmitificação das normas genéricas; é a possibilidade de se desenvolver, passo a passo, uma imagem de cidade.

A participação popular é valorizada no 2º PDDUA. Presente conceitualmente na legislação de 79, neste momento ela é incorporada ao processo de planejamento apresentando níveis diferenciados que garantem o controle social. A regionalização, que já demonstrou eficiência nas discussões sobre o orçamento municipal, aponta para uma participação comunitária efetiva, abrindo caminho para um processo de valorização das potencialidades locais através da troca de informações - técnicos/comunidade - e do levantamento de demandas e potencialidades.

A participação popular e a definição de estratégias de desenvolvimento são a garantia das Operações Concertadas, do processo de flexibilização legislativa. De outra forma estas intenções poderiam ser consideradas como uma possibilidade de ameaça ao interesse público. As estratégias precisam táticas de atuação pública nos mais diversos campos de atuação do planejamento, servindo como orientação, delimitando caminhos a serem seguidos. E a estruturação de um sistema de participação, através das Regiões de Gestão do Planejamento, cuidará para que o interesse comum seja mantido, através de um rígido controle social.

Regras mais simples, procedimentos de ajuste contínuo, abertura às parcerias, controle social, caracterizam a nova proposta de Plano Diretor para Porto Alegre. Entende-se que, desta forma, incorpora-se o conceito de gerenciamento ao lado de planejamento, ou seja, não se está abrindo mão do ato legítimo de planejar, de desenhar o futuro da cidade, mas se está reconhecendo a fragilidade de nossos esquemas frente à multiplicidade dos processos urbanos.

*ARQUITETA, MESTRE EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, SUPERVISORA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DA SECRETARIA DO PLANEJAMENTO MUNICIPAL

 

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