TUDO É CIDADE

CLÉIA BEATRIZ HAUSCHILD DE OLIVEIRA

Acreditar que a cidade pode e deve ser tratada como um todo único, onde há lugar para tudo e para todos, não implica em transformá-la em um imenso aglomerado urbano. Produzir este texto significa trazer para o debate público uma visão, baseada em estudos e experiências obtidas ao longo dos 18 anos de implantação do 1º PDDU. Soma-se a isto uma vivência do meio rural, particularizada, que me permite, por conhecer esta realidade, defender com segurança que, através de um planejamento estratégico, criterioso e responsável, teremos uma cidade culturalmente rica, diversificada, articulada e democrática.

Reconhecer as diferentes escalas dos sistemas urbanos; evidenciar os distintos processos da evolução incontestável dos condicionantes ambientais necessários aos habitantes dos centros urbanos; entender as cidades como um sistema complexo, onde intervêm inúmeros agentes transformadores da realidade - simultaneamente e de forma antagônica - significa aceitar a idéia de que, para Porto Alegre, em função das características de ocupação do solo, diversidade e complementaridade de funções - tudo é urbano.

A percepção diferenciada do ambiente municipal, que tem dois contextos fundamentais, o meio natural e o meio cultural no seu sentido mais amplo, onde o primeiro é absolutamente dependente do segundo, é importante porque ambos são essenciais para contextualizar as particularidades das distintas áreas.

O conceito de cidade está vinculado ao de desenvolvimento físico, social e econômico equilibrado em todo o território municipal. Considerando suas peculiaridades e mantendo os valores ambientais existentes, é possível promover a integralidade das ações administrativas. Temos que acabar com as cidades, compostas por partes desarticuladas e constituídas por conjuntos de segmentos sociais distintos, onde os ricos vivem isolados por imensos muros, grades e segurança própria, enquanto os pobres vivem marginalizados em áreas inundáveis, nas encostas dos morros, longe da infra-estrutura e do alcance dos equipamentos urbanos e comunitários convencionais.

Considerar "urbano" o território, na sua totalidade, não implica em estender a malha urbana compacta a todo o Município, mas sim considerar as interfaces sócio-econômicas e culturais de uma cidade, que devem conviver equilibradamente, num meio físico heterogêneo, com funções urbanas de diferentes intensidades de usos, edificações e conflitos. Assumir e abranger a área rural é, ainda, uma oportunidade de dar condições para que Porto Alegre não se torne, no futuro, um imenso aglomerado urbano. E este é um dos pressupostos do 2º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, que propõe mecanismos para manter - como já vinha sendo adotado em nível de diretrizes na legislação atual - os valores ambientais daquela região da cidade, bem como o incentivo à novas tecnologias e aumento da produtividade.

Com dispositivos legais eficientes é possível, ao mesmo tempo, impedir a ocupação descontrolada e promover o estímulo planejado à produção, bem como aplicar os respectivos tributos fiscais de acordo com a ocupação do uso do solo proposta por legislação específica. E isto não significa expandir a urbanização e a superfície construída sobre o natural.

Em 1994 foi concluído o "Diagnóstico do Meio Rural do Município de Porto Alegre", coordenado pela Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio e que contou com a participação de diferentes órgãos. O estudo cobriu cerca de 80% da zona rural, compreendida por várias Unidades Territoriais Seccionais Extensivas (UTSEs) e todas as Unidades Territoriais Seccionais Rurais (UTSRs) do plano em vigência. Observa-se nas análises realizadas, contradições entre o direcionamento dado para estas áreas, quando verifica-se uma maior concentração de propriedades voltadas à produção agropecuária nas UTSEs , enquanto aquelas com a finalidade de moradia/subsistência e lazer mais presentes nas UTSRs. Também chama a atenção que a maioria da população do meio rural está em propriedades não destinadas a atividades de caráter produtivo.

Ainda conforme os dados apresentados no referido diagnóstico, verifica-se que as propriedades do meio rural são destinadas em 19,5%, 44,8% e 26,2%, respectivamente, para produção/comércio, moradia/subsistência e lazer. Estima-se que cerca de 60% das propriedades que desenvolvem atividades rurais localizam-se, conforme divisão territorial do 1° PDDU, em Área Urbana de Ocupação Extensiva, onde predominam os minifúndios, sendo 30,80% com área de até 2,0 hectares (módulo mínimo de parcelamento do solo na Zona Rural , e 38,90% de 2,0 a 10 hectares, totalizando 69,70% dos imóveis rurais, que são responsáveis por 13% do consumo total de Porto Alegre. Sabe-se, também, que 74 % da produção é comercializada na Ceasa.

Este estudo demonstra, em suas conclusões, otimismo, por parte dos produtores, que demonstram intenções de manter e expandir a área de produção, introduzir novas tecnologias e mudar alguns produtos. São fatores que reforçam a potencialidade existente para o desenvolvimento de atividades voltadas à produção primária, em especial a fruticultura, a floricultura, produtos hortigranjeiros, exploração leiteira , através de tecnologias apropriadas para o meio, com crescimento do plantio de culturas e criações intensivas.

As informações e análises contidas no relatório demonstram, também, que o meio rural representa a área necessária para melhorar a qualidade de vida de Porto Alegre, onde a atividade econômica deverá estar associada à preservação ambiental, além de ressaltar uma tendência comum aos grandes centros modernos, de explorar a existência de um potencial para a implantação dos serviços e atividades voltadas para o lazer e turismo.

A proposta do 2º PDDUA dá ênfase para o desenvolvimento do Município incorporando, em seu Modelo Espacial, a definição de diretrizes e de estratégias que determinam linhas de atuação que se desenvolvem através de programas e projetos. Desta forma, o novo Plano Diretor, constituído por sete estratégias, destaca dentre elas as de "Qualificação do Patrimônio Natural" e a de "Promoção Econômica e Geração de Postos de Trabalho", as quais ao disciplinar e ordenar a ocupação do solo urbano, associa conceitos básicos à idéia de, entre outras, garantir a manutenção e proteção do patrimônio natural; promover as condições de saneamento completo; revalorizar o papel de Porto Alegre como pólo econômico e metropolitano e promover o valor agregado à produção rural. Na estratégia do Uso do Solo Privado é proposta a extensão do conceito de urbano para a zona rural resguardando as áreas de produção primária e incentivando tecnologias próprias para o desenvolvimento da agro-ecologia, diversamente do que ocorre nas zonas rurais de outras regiões do Estado. Nestas, a produção que se dá em extensas áreas de plantio, contrariamente ao modelo adotado nos centros urbanos com características de metrópole, com solo altamente valorizado e contando com um contingente populacional especializado e dedicado às atividades de caráter mercantil, industrial, financeira e cultural.

Assim, segundo estratégias de desenvolvimento estabelecidas e configuradas no Modelo Espacial, está prevista a transformação da Zona Rural em Área de Ocupação Rarefeita com uma proposta de uso e ocupação do solo semelhante ao estabelecido no 1º PDDU. Para a representação do conjunto de propostas de desenvolvimento para a cidade, esta foi dividida em Unidades de Estruturação Urbana, Macrozonas e Regiões de Gestão de Planejamento para as quais são definidos parâmetros urbanísticos de acordo com as diferentes realidades.

Entre as macrozonas propostas, encontramos a que foi denominada de "Cidade Rururbana" e que representa, na atual proposta, uma área equivalente a quase 70% do território. Incorpora a Área Urbana de Ocupação Extensiva e a Zona Rural do atual Plano Diretor e está destinada a um tipo de ocupação rarefeita, diversificada, caracterizada por atividades do setor primário, lazer e turismo, educação e uso residencial de baixa densidade, integrados em projetos onde os valores naturais devem ser manejados para a conservação. Para esta porção do território o uso e parcelamento do solo são semelhantes aos propostos na legislação atual, porém mais restritivo.

Portanto, uma cidade como Porto Alegre, que possui uma grande superfície de solo não ocupado completamente, e um sítio privilegiado nos seus aspectos geomorfológicos e paisagísticos, tem condições de crescer equilibradamente através de parâmetros apropriados para esta realidade. A cidade proposta no 2º PDDUA deverá contemplar as diversas faces em diferentes intensidades. Isto significa manter as características do sitio e ocupação; diferenciar a cidade Norte da cidade Sul, sem contudo deixar de integrar as relações da coletividade; promover o gerenciamento para inibir a ocupação espontânea e irregular, e procurar viabilizar as áreas de preservação através de projetos e programas, que buscam à sua sustentabilidade.

Defender o conceito de que tudo é cidade - como um dos pressupostos do planejamento atual - é entender a diversidade; é conservar o natural e valorizar o cultural; é difundir o pluralismo e promover a integração social. É manter a integralidade do Município e promover esta unidade através de diferentes ações, planos e projetos. Isto representa pensar a nossa cidade no contexto regional, dar a devida importância à sua identidade; reverenciar sua inigualável condição de Capital de Estado e, acima de tudo, dar destaque para o lugar que ocupa de Centro Metropolitano.

Como não poderia deixar de ser, a construção desta nova proposta se faz através da evolução histórica de um planejamento global e criterioso, que tem origem nos anseios da população e, sobretudo, incorpora experiências e conquistas de planos anteriores.

Enfatizamos aqui a idéia de uma cidade do futuro, mais que uma opinião individual, uma prospecção coletiva. Como afirma Félix Guattari, no livro Caosmose - Um Novo Paradigma Estético: " As cidades são imensas máquinas - megamáquinas, para retomar uma expressão de Lewis Mumford - produtoras de subjetividade individual e coletiva. (...) Desta forma, os urbanistas não deverão mais se contentar em definir a cidade em termos de espacialidade. Esse fenômeno urbano mudou de natureza. Não é mais um problema dentre outros; é o problema número um (...)"

*arquiteta/ Coordenadora de Estudos Urbanos da Secretaria do Planejamento Municipal

 

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